Melodia
Eremita
Caminhava pela rua a ler, uma prática que não recomendo aos lisboetas. Relia a Sibila, de Agustina, levantando a cabeça a cada dez passadas. Porém, a prosa por vezes alheia-nos do mundo e devo ter dado mais do que dez passos sem pausa na leitura quando ouvi uma assobiadela curta mas ainda assim melodiosa, como um alerta sonoro de telemóvel escolhido por alguém com bom gosto. Levantei a cabeça e, a menos de três passos, vi um cego que caminhava na minha direcção varrendo o chão com uma vara e perscrutando o espaço mais à frente com um apuro auditivo sobrenatural. Era um daqueles cegos de peles engelhadas no lugar do globo ocular e que não usam óculos escuros. Suspeito que, ao longo dos anos, o cego foi apurando a melodia do seu assobio para alertar e logo encantar os transeuntes encautos, de modo a que quando erguem a cabeça não se distraiam nem assustem com a figura que lhes surge pela frente e imediatamente abram caminho. Assim se passou.