Um desastre iminente
Eremita
Por um motivo que me escapa, comecei a receber manuscritos de áreas que não domino. Primeiro foi aquele ensaio sobre Schopenhauer, em que o autor, sem nunca largar o corrimão da revisão bibliográfica, conclui que não nos devemos preocupar com os argumentos lógicos contra a existência de livre arbítrio, porque o sentimos enquanto tal. Fiquei mais descansado. Corrigi depois um outro ensaio, pejado daquelas redundâncias que denunciam um conhecimento pouco amadurecido, em que a ameaça nuclear iraniana é vista como um receio infundado do Ocidente. Corrigi o último parágrafo com um afinco particular, tendo em conta as possíveis consequências geopolíticas. Recebi ainda o currículo de uma enfermeira norte-americana, tão competente nos cuidados continuados que, ao ler o documento, não se fica com vontade de a contratar mas de envelhecer para que ela cuide de nós. E, a terminar esta miscelânea que não antecipara, editei uma carta de motivação de um jovem alemão ambicioso, suficientemente falsa para não me deixar com a sensação de vergonha alheia tão comum nestas cartas, quando ingénuas. Estes documentos, com um cunho pessoal mais marcado do que os manuscritos de ciências naturais, reforçaram um hábito que venho desenvolvendo desde que comecei este trabalho, que passa por imaginar fisicamente os clientes e com eles estabelecer uma relação unilateral que pode ir ao ponto de desprezar uns e a admirar outros. Receio que, mais tarde ou mais cedo, esta emotividade comprometa o meu futuro como editor freelancer. Só me resta esperar que o responsável por este desastre iminente seja efectivamente uma besta.