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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

28
Out12

Atrasar relógios


Eremita

São tantas as oportunidades de escrita que resultam da convenção de atrasar a hora a uma dada altura do ano, que fico paralisado. Pelo contrário, o rapaz do cineclube organizou na noite de 27 para 28 de Outubro uma maratona de filmes que incluem viagens no tempo. Trivial ou, como se passou a dizer, simplex.  O empreendedor é sobretudo alguém que, no gesto de se conformar consigo próprio, acaba por fazer alguma coisa. 

 

 

27
Out12

Vergílio Ferreira


Eremita

Releio e releio o primeiro capítulo de Para Sempre. É maravilhoso, que domínio sobre a língua, as emoções e o tempo. Memória, ternura, sexo e morte. E que mais há? Antecipa Lobo Antunes aos 235 anos de idade, se o escritor viver até lá e continuar a libertar-se da pirotecnia ao mesmo ritmo a que nos habituou nas últimas 3 décadas. Manuseio um exemplar da Livraria Bertrand, que custou 650 escudos e pertence ao meu pai - tudo isto se aprende na primeira página. "Abro a porta do quintal. É um portal desconjuntado, as dobradiças a despegarem-se". Também o  livro é desconjuntado, as folhas a despegarem-se e já com fita-cola a fazer de dobradiça. Quem as colou? Suspeito que foi a minha mãe.  Penso depois numa qualquer evocação a estas páginas dissimulada no começo de BW. Mais do que ousadia, seria a solução prática, pois sinto-me como um campista encharcado e que ainda não decidiu em que local vai começar a montar a tenda. Entretanto gastei o dinheiro que não tinha (399 euros) num computador para onde transferi os ficheiros BW e que nunca terei ligado à internet. Ridículo, eu sei. 

24
Out12

...


Eremita

A cada trinta gasto um

Não sei que lastro se acumula dia a dia
É como a erosão das noites nas manhãs
A poeira que à tarde se acrescenta ao chão
Veio hoje um desses dias, a prumo no fulcro

Chegam mais pontuais que as regras à mulher

 

A cada trinta paro e nada, nada faço
Não chega a ser conserto, é só uma afinação
Um modo de ajustar o sonhado ao possível
Bem a salvo do inverso que dá em loucura

Mas nada, nada, nada faço para que fique
O valor corrigido, este saldo aprovado

Ajuste que me anima logo pela manhã

17
Out12

Fizemos as pazes


Eremita

Não valia a pena prolongar uma zanga com o rapaz do cineclube. Cruzámo-nos na rua, murmurámos qualquer coisa ininteligível e  demos um abraço. Depois entrámos no café e foi já sentados que ele prometeu que não voltaria a plagiar-me. Bastou-me, na medida em que consegui imaginar-me a perdoá-lo se me a plagiar outra vez. Ainda ouvi o poema que ele escreveu no momento sobre o nosso reencontro.

Amigos destes não podem partir à chuva

Amigos destes não podem partir à chuva
Abusar das promessas, esboçar encontros
Futuros na reserva em que nunca se toca

As palavras não saem, só o abraço assim 
Um segundo mais curto e dois fora de tempo


17
Out12

22 segundos


Eremita

The French Lieutenant's Woman (1981) contém uma das cenas de sexo mais rápidas da história do cinema, que ainda não vi documentada. Foi o que fiz. São 41 segundos, se considerarmos o momento em que ela o recebe entre os braços; porém, a acreditar que um primeiro gemido mais alto identifica o momento em que ela o recebe entre as pernas, são 22 segundos. Este pequeno exercício não faz justiça à trama de pulsões em desacerto que o filme constrói, nem capta a solução narrativa para contar uma mesma história com dois finais, o que, embora hoje pareça algo datado e lembre uma versão sofisticada e autocrática do Você Decide, em tempos apresentado por António Sala, tem um virtuosismo a que não sou indiferente.  

 

17
Out12

Um plágio


Eremita

 O poema que o rapaz recitou esta tarde é meu. A princípio, ele não deu o braço a torcer; mais tarde, chorou. Não foi difícil fazer prova e até usei o telefone celular, muito adequado para convencer os jovens. O cabrãozinho mudou o nome ao poema, saiu-lhe curto o rasgo criativo. Quando acabou de chorar, perguntei-lhe se alguma vez o foram esperar a uma estação ferroviária. Então ele disse-me que jamais tinha andado de comboio. Fiquei a pensar no empobrecimento de biografia que foi ir, em apenas três gerações, da experiência do Ultramar à da internet, passando pelo InterRail. Pobres miúdos. O título é dele, relembro, mas o poema é meu. 

 

Gare

Na Gare de L´Est regressei ao útero
Não o das arcadas, dos espaços resguardados
E princípio de um fim ou não, carris são carris
Regressei ao útero, pontualmente
O que se espera da ferrovia gaulesa
Mas não de todas as mães. 

16
Out12

O rapaz não se cala


Eremita

Desta vez foi ao almoço. O Judeu diz que a culpa é minha, diz que o incentivei. Discutimos depois se é legítimo reciclar a prosa de amor. O Judeu é a favor, porque, tal como o estado febril pode ter muitas causas, mas é bem descrito pelo aumento da temperatura do corpo, também o enamoramento é um estado que podemos descrever independentemente do amante. A tese não me pareceu má, mas o Judeu pareceu-me demasiado radical quando disse que o autor do poema não está obrigado a revelar ao seu novo amor que o poema foi escrito para outra pessoa. O rapaz seguiu a nossa conversa com um rosto de grande perplexidade. Creio que só amou uma vez na vida. 

 

Azul

Porto onde se chega 
A gritar mar à vista 
Imagem partilhada 
Com o escultor anónimo 
A figura de proa 
O mármore à chuva no jardim 
As texturas inventadas 
Há uma gota a escorrer 
Mas é de carne 
O rego por onde vai 
E este corpo já não é meu 
Se há uma cor que te diga 
Eu digo azul 
No reflexo de um corvo 
Que depois das tangentes 
Foge a sete asas 
E semeia o Douro 
Por caminhos inadiáveis 
Voa sem os segredos 
Que largou como lastro 
Vai com confidências 
Que aceita como um destino 
Muito além da razão 
Foi o meu corpo 
Traiu-se sem traidor 
Furta-se agora ao rio 
Ganha o mar e o deserto 
O horizonte em círculo 
Esse truque fácil 
De não sair do lugar 
A patriótica vocação 
O abandono existencialista 
E a vida corre ao lado 
Não se pára o curso de um rio 
Com as palmas da mão 
Não se troca de foz 
Com as voltas na cama 
Não cabe um oceano 
Nas palavras de um conto 
Há algo de trágico 
Neste mergulho em apneia 
Descubro-te em braçadas 
Acima é à tona d’água 
E ainda digo azul.

 

 

16
Out12

Mais poesia inédita do rapaz do cineclube


Eremita

Esta madrugada vimos Sol Enganador. Depois o rapaz partilhou alguns dos seus trabalhos sobre o Alentejo e disse-lhe que ele abusa das virtudes fonéticas de "ceifeira-debulhadora". Retive um outro poema, sobre o tempo. Tempo, mulheres e ceifeiras-debulhadoras, eis o universo poético do rapaz.

  

 

Do tempo suspenso

Um ponteiro das horas ao abandono
Sem roda dentada 
Os minutos em ferrugem 
Um peso que não se toca 
Um segundo vai 
E o segundo volta 
Sabes, 
Via sempre a mesma sombra 
No corpo em movimento 
Uma sombra parada 
Que não se parecia com nada 
O céu dava ares de fotografia 
Uma imagem sem retoques 
A eterna alvorada, 
E vinha o padeiro 
Depois o carteiro 
Mas sobrava sempre a mesma sombra 
No corpo em movimento 
Era como se o tempo trespassasse 
Sem deixar ferida 
Um qualquer truque de ilusionismo 
Sem verbo, nem nada 

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