Espelho nosso
Eremita
É por volta dos 18 meses que o bebé começa a reconhecer-se ao espelho. Felizmente, a natureza funciona - se não tivesse feito com que não nos lembremos desses primeiros 18 meses, a busca do momento em que o espelho volta a devolver a imagem de um estranho tomaria conta de mim. Mesmo assim, já dei comigo a tentar surpreender o espelho, virando-me para ele de repente, em busca daquele fulano que se esquiva entre quem eu penso que sou e quem os outros pensam que sou, e que não é uma síntese desta gente, o que seria fácil de conceber e dispensaria este método da busca de si à Lucky Luke, que inclui riscos; nem quando exclusivamente praticado nas casas de banho privadas deixo de imaginar uma câmara do outro lado registando a rotina, para um eterno embaraço, mais vergonhoso do que as poses com a musculatura tensa, os olhares sedutores ensaiados e até um vídeo de uma esporádica masturbação na posse dos meus adversários - digamos - políticos. Também já dei comigo a evitar espelhos e demais superfícies reflectoras, e foi com algum alívio que soube não ser o único, pois até o pai de Lobo Antunes se barbeava com a luz apagada (don't try this at home). Só que nas cidades somos sempre alvo fácil para o nosso reflexo e este jogo não pode durar muito tempo. Creio que a vez em que mais tempo estive afastado da minha imagem foi quando fiz campismo selvagem no castelo de Noudar, já há demasiados anos. Durante uma semana não vi o meu rosto e só vim a reencontrar-me reflectido no espelho do WC da discoteca de Barrancos que escolhemos para comemorar o fim da aventura. Mas é escusado exagerar na retórica da percepção de si mesmo: não me lembro se então inclinei ligeiramente a cabeça ou se franzi o sobrolho, e posso garantir que não toquei no espelho com a mão como se me reencontrasse com um extraterrestre, nem fiz qualquer outro gesto teatral.
Com o passar dos anos, vou também dando conta de que os espelhos caseiros são objectos íntimos, só perdendo para a escova de dentes. O reflexo é uma questão que eu tenho comigo mesmo, o que torna a partilha de um espelho mais preciosa do que a da cama. E o "Com quantas mulheres dormiste?" é uma contabilidade irrelevante, que pede reformulação: "com quantas mulheres te viste ao espelho? E como?" Porque também o espelho encerra a sua coisa e o seu contrário, como se aprende com o caso extremo do espelho no tecto do quarto de San Silvestre de Guzmán, que transforma toda a intimidade em pornografia. Sobram assim poucas imagens, o que me dá um critério de demarcação redentor - e não me envergonha dizê-lo. Dois corpos nus, que quando se entreolham são mais do que a soma das partes, quase uma nudez ao quadrado. Demorando-se um no outro, mais vulneráveis se tornam e mais se afastam do primeiro instante vão que os tentou, chegando enfim a um segredo comum. Não me envergonha dizê-lo.