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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

15
Set11

"And I dreamed that my soul rose unexpectedly"


Eremita

Uma espécie de ciberdúvidas, mas ao som de Paul Simon:

 

Não é este o caso, aqui não há dúvida possível. Não se escreve CDs, e muito menos se escreve CD's, como passo a vida a ler, seja em blogues, seja na imprensa ou em livros. O apóstrofo seguido de "s" nem português é, e indica posse, pertença. CD e DVD são siglas (compact disc e digital video disc, ou digital versatile disc), e as siglas não levam plural. Não se diz ou escreve as ONGs, nem as ONG's. As ONG, apenas.

 

Isto resolve angústias a todos aqueles que têm metadiscurso sobre as sms.

 

Outra que já não posso ouvir nem ler é o adjectivo solarengo.  Solarengo aplica-se ao género de arquitectura de uma casa, a qualquer coisa relativa ou pertencente a um solar. Um dia não é solarengo, um apartamento não é solarengo, se com isso se quer dizer que tem muito sol ou muita luz. É soalheiro, é ensolarado. Solarengo é que não.

 

É só por um feliz acaso que não usei "solarengo" no Ouriquense antes me deparar com este reparo.

 

Se o tradutor não sabia que o verbo correcto era desencadear, e não despoletar...

 

Paul Simon é um génio cristalino e o Garfunkel era a sua mera gemulação acústica. Mas sobre isto creio que existe um largo consenso.




14
Set11

A literatura infantil chega ao Ouriquense


Eremita

O Ouriquense aproxima-se da ideia de projecto total e não excluo a hipótese de começar uma série de provérbios semi-analfabetos em ponto-cruz. Mas para já vamos lançar o Ouriquense para os mais pequerruchos. Como integrar esta pulsão na trama? Trivial. Os filhos de Tatiana crescem a olhos vistos, o pai (Igor) está desaparecido ou, na melhor das hipóteses, morto, e urge educar estas crianças com um conjunto de histórias na nossa língua. São ainda muito pequenos, mas como o nosso tempo é lento e os projectos se espraiam por vários anos, decidimos começar. Começa o eremita e se correr mal entrará o Judeu. O Fausto recusou participar, pois não quer sangue ucraniano no Baixo-Alentejo. Creio que a isto se chama xenofobia, mas os afectos tudo perturbam e comentei com o Judeu que era uma idiossincrasia. A primeira história é uma fábula com uma ave migratória imaginária, a garça vermelha de bico de martelo e foice, que passa a Primavera-Verão na Ucrania e o Outono-Inverno em Portugal. 
14
Set11

Escolas


Eremita

Rogério Casanova escreveu recentemente (Público) o primeiro texto decente sobre David Foster Wallace a aparecer na imprensa lusa e talvez contribua para que alguém traduza o americano (good luck). Dito isto, Casanova é mais um discípulo da escola que se rege pelo mandamento "Não falarás do suicídio de DFW", que se opõe diametralmente à escola adepta de uma reinterpretação da obra de DFW à luz da sua morte. Não querendo com isto provocar o Judeu, é natural que os debates se polarizem. O problema não está no pólo que se escolhe, mas no que essa escolha pressupõe. Não é um perigo universal. No debate sobre a possível causa humana para o aquecimento global, a escolha não coloca ninguém numa posição à partida subserviente. Já nos debates entre cristãos e ateus, os primeiros assumem sempre a dianteira, pois os segundos são definidos ou definem-se a si próprios pela negativa. No caso de DFW, a polarização também não favorece quem faz do seu suicídio um tabu. Isto não me ocorreu lendo algum dos textos de DFW mais facilmente associáveis ao suícidio, como o The Depressed Person. Foi ao ler o ensaio sobre a autobiografia de Tracy Austin, o prodígio do ténis feminino que viu a sua carreira terminar aos 21 anos. Uma das teses do texto é a de que o discurso habitualmente aborrecido e cheio de chavões dos campeões traduz uma autoconfiança e incapacidade de entrar nas espirais da dúvida que são essenciais ao sucesso, mas há um subtexto, provavelmente inconscientemente censurado, alimentado pelo absoluto desconcerto de um DFW a tentar entender como aquela mulher não soçobrou com o fim da sua carreira no ténis. 

 

Sem tempo para mais agora, prometo voltar aqui. Prometo mesmo. Por uma vez, acreditem em mim.


13
Set11

Só faltou a Marilyn


Eremita

Se a epifania colectiva existir, o momento em que percebemos* junto de outros aquilo que somos e o que nos une, com uma nitidez e pudor tais que não precisamos de o partilhar, mas também não saberíamos como fazê-lo, ontem passei por uma. Estava a jantar em casa do Judeu, apareceu o Fausto e juntou-se depois o Gaspar, o rapaz do cineclube. Houve um silêncio entre palavras e talheres e percebemos todos o que somos: uns inadaptados.

 

* Adenda: houve por aqui um pontapé rotativo na gramática que resultou de  uma reformulação do texto mal revista.

13
Set11

O Luís


Eremita

16485.jpg

Seestück (Gegenlicht)
Seascape (Contre-jour)

O Luís foi o único amigo que fiz em Ourique quando era criança. Temos a mesma idade, mas ele era mais pobre, mais moreno, mais forte, mais rude e experiente com a fisga e a flóber. O contraste entre o campo e a cidade era perfeito e havia ainda isto: o Luís nunca tinha visto o mar. Para se perceber, devemos primeiro olhar de fora, muito de fora, por exemplo, da Lua, e notar que há no planeta mais partes de água do que de terra. Devemos depois mudar de perspectiva com uma piscadela, passar a ver de dentro, isto é, com os olhos do Luís, mas ainda informados pela paisagem que se avista da Lua. Só assim se terá uma ideia do que foi o seu baptismo de mar. À distância, foi uma experiência imperfeita, um pouco como ter a primeira relação sexual num prostíbulo. Demos-lhe o mar da Praia da Rocha e não nos ocorreu que teria sido melhor levá-lo até uma anseada deserta qualquer próxima de Sagres. Não nos ocorreu fazer daquele momento uma cerimónia, colocar-lhe uma venda para que não fosse fulminado por uma nesga de mar quando ainda estivesse dentro do carro. Mas quantos pais farão de mostrar o mar aos filhos um marco? Há as primeiras passadas, o dia em que se tira as rodinhas da traseiras da bicicleta, a primeira comunhão, etc., mas não se regista o primeiro dia em que se vê o mar. Pelo menos eu ainda me lembro de o ver a correr pela praia como um touro bravo - vá, um pequeno touro bravo - e quando ando por Ourique demoro-me sempre mais um instante nos rostos dos homens, estando ainda por esclarecer se o Luís emigrou, morreu ou mudámos tanto que não nos reconhecemos.

 

12
Set11

 

CUSPIR NA AÇORDA

 

 

Companheiros e amigas,

 

Volto ao vosso convívio, para dar voz a um protesto que julgo captar o sentimento de todos os alentejanos. No passado sábado, o Alentejo não viu a sua gastronomia representada numa lista final de 7. Não vou perder tempo a lembrar os méritos da nossa cozinha, amigos. O que se passou é um sinal do que pode acontecer quando damos o voto ao povo. O povo não é mau, apenas se deixa manipular. A culpa fica com os promotores do concurso, uns quaisquer lisboetas medíocres.

 

A gastronomia portuguesa é hoje património imaterial. Pois bem, onde está a imaterialidade de cozinhar uma sardinha? Ir buscar um peixe gordo ao mar, salgá-lo e colocá-lo na grelha, é gastronomia? Não será a gastronomia, como a alquimia, a química e a música, a arte de fazer do todo mais do que a soma das partes? E não sabemos já - todos o sabemos, vejo isso escrito em toda a parte - que a nossa pobreza de recursos fez com que o génio alentejano se revelasse? Mas deixemos os coentros de fora, pois se até neste pão que agora esfarelo há o saber e o sabor, não podemos aceitar pacatamente que a nossa açorda perca para a sardinha. Não podemos, irmãos e amigas. Esperam-nos tempos difíceis. Continuemos gregários. O meu nome é Fausto Gomes.

10
Set11

O tricórnio


Eremita

- Jorge Gabriel?

- Jorge Gabriel. 

- Como queres que te leve a sério?

- Pavese neste canto, Bukowski no outro e aqui o Jorge Gabriel. Para completar o triângulo. 

- Posso colocar a minha cruz fora dele, em sinal de protesto.

- No triângulo increve-se todo universo das opiniões possíveis que um homem pode ter sobre uma mulher. Coloca a cruz na posição mais adequada; sobre Pavese, se és como Pavese, sobre Bukowski, se és como Bukowski, sobre Jorgel Gabriel, se és como Jorge Gabriel; no centro do triângulo, se estás equidistante dos três, sobre o ponto médio da linha que une Pavese a Bukowsi, se estes dois te são indiferentes e está nos antípodas de Jorge Gabriel. Percebes?

- Tu tens uma técnica de pedagogia algo extenuante, Judeu.

- É para não haver equívocos.

- Mas eu nem sei que opinião tem Jorge Gabriel sobre as mulheres. E o tem sistema de classificação com base em triângulos ortogonais é um absurdo.

- É um projecto de conceito, uma rebelião contra o sistema dicotómico.

- Que nunca funcionará.

- O sistema dicotómico é uma forma de corrigir um erro persistindo nele. O meu tricórnio rompe com o espartilho da dicotomia.

- Mexes com a a natureza. O sistema decimal é o mais natural porque temos dois dedos e a chave dicotómica funciona porque a lógica se faz com um verdadeiro e um falso, porque existe a dualidade corpo e alma, porque houve muitos filósofos gregos, mas basta pensar em Platão e Aristóteles. Porque as coisas são assim ou assado e não são outra coisa.

- E as ressalvas?

- ...

- E a contextualização?

- ...

- E as diferenças de grau?

- O Jorge Gabriel é, portanto, a solução.

- Não desconverses. A solução é o tricórnio. Mas é arte de conceito. O sistema ideal não seria com base em triângulos ortogonais, mas sim em esferas. 

- Sabes que tenho problemas em visualizar o espaço tridimensional.

- Esquece o Jorge Gabriel. Já te expliquei que depois de definida uma cruz avançamos com outro triângulo, ortogonal ao anterior e com os cantos equidistantes da última cruz. A cada canto atribuímos novas propriedades e assim se completa mais um passo. A imperfeição do sistema é a inexistência de um critério para distribuir as três qualidades no espaço. Precisei de juntar uma função aleatória. Ainda estou a tentar resolver isto. Mas põe lá a cruzinha.

- O Jorge Gabriel diz o quê sobre as mulheres?

- Lê aqui e depois despacha-te. 

- Judeu... Olha para mim: eu não sou um pavesiano. Tu sabes isso, não sabes?

 

 

09
Set11

O eremita adere à formação contínua


Eremita

Falhei o teste de tradução técnica. Creio que foi o primeiro teste que não passei na vida, o que traz a este episódio algumas propriedades apocalípticas., sobretudo porque continuo com dores nas costas. Mas entretanto recuperei psicologicamente. Peter ajudou-me bastante a gerir esta frustração e já me convenceu a fazer um curso online de tradução, desafio que aceitei depois de assegurar que o judeu me adianta as 390 £ da inscrição. No fundo, não me falta talento, falta-me experiência. E a minha grande falha foi não ter captado com exactidão o local em que se faz a incisão de 1 cm na mucosa da vagina ao omitir a palavra "proximal" e optar simplesmente por escrever que era a 1 cm da meato uretral, deixando o jovem cirurgião na dúvida: do lado de fora ou do lado de dentro? É natural que pensem que foi negligência minha, mas provavelmente foi por pudor. Cheguei quase a invocar discriminação de género, porque se me tivessem dado a traduzir a descrição de uma vasectomia tenho a certeza que o desembaraço seria outro and I would have excelled.

08
Set11

Filhos de Tatiana


Eremita

Wallaciana

 

Certo dia, expliquei a uma criança que era inútil tentar transferir a autoria do seu peido para outro se não houvesse pelo menos uma terceira pessoa na sala. Lembrei-me deste episódio porque o convívio apenas a dois é uma espécie de solidão por exclusão de partes; só a partir de três se alcançam os graus de liberdade necessários à eficaz gestão pública do peido e a outras rotinas, porventura mais complexas e nobres, que definem o convívio como um confronto efectivo com a solidão. Nesse sentido, é só por estes dias que abandono a condição de eremita. Em Ourique, ganhei alguns conhecidos e um amigo, mas até ir de férias o meu convívio com o Judeu fez-se sempre a dois. Não é mais assim: enquanto recolhia bagas na costa alentejana, o Fausto aproximou-se do meu amigo e agora parecem ser íntimos um do outro. Ontem dei por eles a falar de mim, numa daquelas circunstâncias - fingi que tinha adormecido no sofá depois do jantar - em que ouvimos tudo como se nos dessem por mortos. Especulavam sobre quão triste eu estaria por não serem meus os filhos de Tatiana e sobre as técnicas que empregaria para não o mostrar.

 

É verdade que não dei os parabéns a Tatiana, mas as convenções sociais existem para delas nos servirmos, não para nos sentirmos peças de uma engrenagem. Depois de pensar longamente no que sentia, concluí que era apatia. A apatia pode traduzir uma pulsão ausente ou então duas os mais pulsões que puxam para lados opostos, de tal forma que o vector resultante é nulo. Qual é a minha? Depende de onde se quer parar. 

 

Continua

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