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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

31
Ago09

Cineclube: (The) Inglo(u)rious Bast(e/a)rds


Eremita

Segundo alguém

 

 

Segundo Tarantino

 

 

Recomeçaram as sessões de cinema. O rapaz tinha um plano para o Verão - um cinema drive-in -  que não se concretizou por manifesta megalomania. O que sobra hoje na planície é o vestígio dessa visão, uma enorme parede caiada com 10 metros de altura e 15 de largura, no segundo morro mais alto de um monte próximo da vila, propriedade da família do rapaz e cuja localização prefiro omitir, para não não convocar a malta dos graffiti. O rapaz fez um discurso emocionado e prometeu-nos que em 2010 a parede vai agitar o meio cinéfilo a sul do Tejo e juntar pickup trucks, de Sines a Marvão, atraídas pela dança sensual de uma Rita Hayworth monumental que parecerá fazer cócegas às estrelas com a madeixa desalinhada de Put the Blame on Mame

 

Assistimos à projecção do último Tarantino no armazém do costume. O filme foi bem pirateado, creio que no cinema Monumental; apesar das pontuais aparições de uma cabeça no canto direito, sempre inexplicáveis pela trama, as poucas risadas francas da plateia que ficaram gravadas  foram coincidentes com as nossas e não soaram com aquele milésimo de segundo de antecipação das gargalhadas enlatadas dos programas cómicos. No final da projecção houve um pequeno incidente: uma das libertinas de Lisboa  levantou-se e contou-nos a história de um familiar ouriquense, que, ainda adolescente, terá transposto fronteiras à paisana com a ideia fixa de assassinar Manfred Albrecht Freiherr von Richthofen, o Barão Vermelho, para assim vingar o seu pai, que integrou o Corpo Expedicionário Português e terá morrido na batalha de la Lys, a 9 de Abril de 1918. A morte de Barão Vermelho, a 21 de Abril do mesmo ano, não está completamente esclarecida e dá-se crédito  à hipótese de o aviador ter sido abatido por um tiro disparado do solo, mas ninguém acreditou no relato. Ainda assim, preferimos não pôr em causa a rapariga e fizemos acenos de concordância quando ela nos disse, emocionada, que já regurgitava filmes sobre nazis e que precisávamos todos de um grande filme sobre a Primeira Grande Guerra Mundial.

 

30
Ago09

O álbum (VI)


Eremita

Considerandos de fel 

 

Sempre me pareceu que o pior exercício da crítica acontece na música pop. O crítico pop não chega sequer a ser um músico frustrado. Ele pura e simplesmente não sabe música. É claro que a música é o que de menos complexo tem a mensagem pop. E não perceber de composição e de análise musical é hoje dispensável para fazer crítica pop, mas assim é porque uma má tradição fez com que deixasse de ser necessário. O reaccionário não sou eu, são os críticos de música pop. Acresce que são todos homens. Até a redaccção de A Bola deve ter mais mulheres. O crítico pop tenta prolongar a sua adolescência, fazer do ordenado uma mesada. A mulher cresce mais depressa e não tem tempo para coisas de rapazes. Quando imagino uma daquelas situações-limite em que é preciso de afrouxar a mão e deixar cair uma pessoa no precipício para poder salvar a outra, o crítico pop só sobrevive se na outra mão tenho um DJ. 

30
Ago09

Making of Ouriquense - o álbum (V)*


Eremita

 Considerandos metodológicos

 

Acordei a assobiar o refrão de Tatiana. Espontaneamente. Está cumprido um dos critérios de selecção. Na revisão de um texto, a noite dormida é essencial para recuperar a capacidade de detectar erros, perdida ao fim da terceira leitura.  Dorme-se para esquecer. Mas na feitura de uma canção, o seu potencial de contaminação da memória avalia-se na manhã seguinte. A canção é tratada como um agente infeccioso acústico, otovérmico - na feliz formulação de Miguel Esteves Cardoso. Dorme-se para recordar. 

 

* Doravante, para contrariar no Ouriquense uma descabida anglofilia, o título desta série  passa a ser apenas "o álbum".

28
Ago09

Fábula ornitológica


Eremita

 

Hoje a vila acordou animada. Alguém descobriu uma cria de pelicano-branco dentro de um ninho de cegonhas. Não é rábula, é fábula que honra a imigração. Como aqui. O improvável pelicano estará para o Ouriquense como Deepo para o Incal, pois se este, que  é de cimento, tem um voo inexplicável, aquele, tão arredio destas paragens, é ainda mais extraordinário.

 

27
Ago09

Making of Ouriquense - o álbum (III)


Eremita

Considerandos teóricos

 

 

David Fonseca tocava na rádio. Não percebi o que cantava, só que ainda experimentei a mesma incompreensão com que há anos o vou escutando. Sempre na rádio, claro. Não percebo aquelas letras e é sempre a mesma incompreensão. Esta word cloud, feita com temas de David Fonseca é, para mim, a sua melhor letra. Experimente cantá-la da esquerda para a direita, caro leitor, com uma entoação à David Fonseca e forçando, sofrendo ou prolongando a tónica das palavras maiores; terá a sensação de estar a fazer um cover de David Fonseca que o próprio David Fonseca não escreveu - também funciona da direita para a esquerda, de baixo para cima e de cima para baixo, mas desaconselho as diagonais.

 

Acontece-me o mesmo com Mafalda Veiga. Consigo distingui-los, não os percebendo. Mas falemos de André Sardet. Trata-se de um grande músico e - sem dúvida - do melhor melodista da sua geração. As suas letras são absolutamente compreensíveis, lógicas e ajustadas ao seu universo musical. Sardet faz todo o sentido, no sentido que procura e no conjunto que representa. David Fonseca e Mafalda Veiga não fazem sentido nenhum. 

 

 

25
Ago09

Moby-Dick


Eremita

 

A minha existência de caçador-recolector com assistência durou menos do que o previsto. Planeava ficar pelas margens da barragem até meados de Agosto e a verdade é que regressei há mais de duas semanas. Gostaria de frisar que nenhuma dependência na civilização me vergou - não dependo de pessoas e ainda menos de apetrechos. Enfim, percebi que o canivete suíço goza de uma reputação exagerada e teria dado jeito dispor de outras soluções, mas após quatro dias consegui adaptar-me ao montado e a perdiz que matei com a flaubert deu-me um ânimo que sobreviveu ao repasto cinegético. Se voltei à vila foi porque incubei um medo às noites ao relento que se tornou insuportável de gerir.

 

À partida, o montado é uma paisagem que tranquiliza. Uma vez, a caminho do cimo do Pico, nos Açores, quando passava sozinho por uma área de floresta, a cabeça disparou uma série de imagens aterrorizadoras de selvagens dissimulados nas copas, prontos a cair sobre mim. Vieram depois imagens ainda mais assustadoras, não já com o cunho National Geographic, mas sim da cinematografia americana do subgénero "terror de bosque" - especímenes que eram variações do Bigfoot e psicopatas vários que levavam vidas saudáveis, isto é, no campo. Estive quase para arrepiar caminho, mas consegui controlar-me o suficiente antes que qualquer som real - o vasculhar de uma galinha por entre os arbustos - materializasse os produtos da minha imaginação. Porém, só recuperei a tranquilidade quando rompi a cintura de floresta que abraça o vulcão e entrei nas pastagens das terras altas. Podemos teorizar: o medo irracional é inversamente proporcional à distância a que se encontra o horizonte. Por isso a noite assusta mais do que o dia, a floresta mais do que a planície, os corredores da casa assombrada mais do que o caminho para tal morada. Por isso, o clímax em The Shining acontece num apertado labirinto e Jaws é tão assustador - no mar o horizonte pode estar a milhas, mas o que conta é o horizonte vertical do plano de água, que está sempre à beira. Havia pois motivos para confiar no montado, que é paisagem ampla e em que dificilmente se arma uma cilada.

 

Quem durante um ataques de pânico retém alguma lucidez, sabe que o medo alastra pelo corpo com frentes cujo epicentro é impossível de definir e que há uma altura a partir da qual não se pode reverter a tendência. Se penso em vampiros no montado, apenas inicio este processo, podendo sempre abortá-lo. Sucede que pensei em escorpiões, nomeadamente no nosso lacrau, o Buthus occitanus. O bicho é pouco venenoso, só que imaginar este predador nocturno-crepuscular a entrar no saco-cama deu-me uma noite de insónia e um cansaço no dia seguinte que me desmoralizou. O moço de recados ainda tentou animar-me, mas nessa tarde apenas recolhi as forças para poder pedalar de volta à vila. O caminho de volta custou, porque sabia que não escapava de uma morte estúpida, o que seria redentor. É importante distinguir entre a morte estúpida e a morte azarada. Francisco Lázaro, que se untou de sebo para correr a maratona, teve uma morte estúpida. David Carradine, que  - tanto quanto se pôde apurar - gastou a vida numa brincadeira sexual, teve uma morte igualmente estúpida. Diferente é a morte azarada. Ser colhido por um carro que desrespeitou um sinal vermelho é uma morte azarada, tal como ser apanhado entre um tiroteio, sobretudo se for no restaurante. Por definição, a morte azarada não se evita. Logo, não se pode fugir de uma morte azarada. Mas se não desejamos a morte, temos a obrigação de evitar uma morte estúpida.  Ainda senti a tentação de fazer do lacrau um bicho com veneno mortal, para simular que evitava uma morte estúpida, só que não podemos abdicar do rigor. O regresso à vila foi inglório, fruto de uma fraqueza só ligeiramente menos vergonhosa do que a fobia a baratas.

 

Os poucos dias de vida ao relento fizeram-me perceber que Tatiana só me complicou a vida. Que paixão é esta por uma mulher casada, que mais não será do que uma allumeuse pudica, incapaz de atraiçoar Igor e também de retrair o dedo caprichoso que roça nos meus quando me dá o recibo? Se ninguém escapa à intrínseca falta de originalidade na paixão, é imperativo exigir o máximo do ser desejado. Convenhamos que Tatiana é analfabeta em português e que amar sem uma língua comum é sobretudo um caso de iliteracia.  Nada do que esta mulher fez é merecedor de devoção. O que vale eu ter sobreposto o seu corpo, quando ela caminhava, com imagens do meu arquivo? Fosse outro o ângulo com que a observava e não haveria hoje amor. Há algum sentido nisto? Se Tatiana nem beleza tem? Aquele nariz?  Pertence-lhe o osso, a pele e a cartilagem, mas é meu o culto. E não detecto nela as tais redeeming features; é possível que as tenha, mas não se pode fundar um amor em tal esperança. É tempo de lhe dizer que guarde o troco. Foi embalado nestas vontades que retomei o grande desígnio adiado do Ouriquense, isto é,  a leitura do cânone ocidental. 

 

Devorar o The Great Gatsby restaurou a minha urbanidade, mas agravou o mal de amor. O livrro tem momentos libertadores: I’d been writing letters once a week and signing them: “Love, Nick,” and all I could think of was how, when that certain girl played tennis, a faint mustache of perspiration appeared on her upper lip. E a voz de Fitzgerald quase conseguiu chegar próximo, no impacto sobre o leitor, da voz de Heller nesse milagre que é o Catch-22. Mas aquela teia de relações não veio nada a calhar. E fiquei indeciso quanto à morte de Gatsby, sem saber se foi azarada ou simplesmente estúpida. Decididamente, só a literatura para rapazes me pode hoje salvar. Quero livros sobre a coragem, a camaradagem e as miragens da ambição. Lancei pois a mão aos grandes livros do género entretanto catapultados para o cânone, mas que, na sua essência, não deixam de pertencer ao género de literatura que melhor subalterniza o amor. Refiro-me a Robinson Crusoe, de Defoe,  Heart of Darkness, de Conrad, e a Moby-Dick, de Melville. O primeiro é o livro da minha vida e uma nova leitura viria com o perigo de me reenviar vinte anos atrás. O segundo está num tupperware delgado de afiambrados e não me pareceu ter dimensão (física) capaz de me assegurar a purga de que necessito. Moby-dick é o calhamaço ideal e destrona o Quijote. A culpa é de Dulcineia, obviamente. Quando se remonta a uma causa esbarra-se sempre com uma mulher. 

 

 

23
Ago09

Making of Ouriquense - o álbum (I)


Eremita

A falta de um conjunto de temas originais é o calcanhar de Aquiles que tem impedido a concretização do Ouriquense como projecto multimédia. Obviamente, o Ouriquense não se queria um musical e jamais teve o Politeama no horizonte, mas tem condições para se impor como projecto de conceito, que seria: um homem sem grande voz, uma velha guitarra, a interioridade rural e psicológica num conjunto de canções que não pretendem homenagear Rui Reininho. Enfim, hoje foi um dia bom porque compus o refrão da primeira canção, intitulada "Tatiana". O refrão, que no meu método de composição costuma ser a primeira pedra da letra, descreve a única interacção física entre um homem e Tatiana, que tem lugar durante o pagamento das compras do supermercado. Creio que testemunhamos a génese de umas das primeiras canções portuguesas com uma referência à nossa segunda maior comunidade de imigrantes. Espero que a Associação dos Ucranianos em Portugal se lembre deste facto e venha a funcionar como caixa de ressonância, caso consiga terminar o álbum e reunir depois artistas que o levem para a estrada (um eremita não anda em tournée). O refrão começa com uma nota alta, mas nada que exija a voz de um Chris Isaak. Há depois uma transição da melodia da voz para a linha de baixo, que reenvia a canção para a alternância obsessiva dos dois acordes iniciais. Estou satisfeito com o resultado e a dúvida que me consome é saber se incluo ou não uma referência explícita a Ourique, na linha de um Ó Elvas, ó Elvas (A minha cidade) do grande melodista que é Paco Bandeira; no fim do post, submeto este problema à apreciação dos leitores. Mas vamos ao refrão:

 

 

Ai,Tatiana

Eu só quero atenção

Não me toques na mão

Se não passas cartão

E dás o troco em moedas

 

Logo que consiga resolver certos problemas logísticos, fazer o resto da canção e contornar alguns desajustes de métrica que parecem não preocupar o inspirado  Samuel Úria, conto deixar uma versão acústica deste tema e a respectiva cifra, para quem o quiser tocar em festas ou no recato do quarto. Faço notar que não é uma canção apropriada para serenatas. Se houver por aí alguém com talento para as congas que queira juntar uma percussão à maqueta, terei todo o prazer em enviar o original e incluir o  nome do colaborador na ficha técnica, caso haja satisfação mútua com o resultado final. 

 

 

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