[Celebração da Primavera - republicações]
O moço traz-me jornais. Costumo lê-los de trás para a frente, mas sempre com a mesma frustração. Há poucos obituários na imprensa. Como se explica isto? A hipótese de que as pessoas interessantes têm vidas longas (Saramago, Oliveira) é aparentemente falaciosa, mas ganha pertinência quando conjugada com o culto da juventude e a efemeridade da memória. Se Michael Jackson tivesse morrido aos 80 anos não teria havido nem um décimo do alarido. O interesse do povo por uma determinada pessoa tende a decair com o anos. Como o decaimento é exponencial e nunca linear, não resulta do simples desaparecimento físico dos fãs, mas antes da atenuação da condição de fã. É também possível que a juvenilização das redacções tenha tido impacto. Vejo aqui matéria para uma tese de charneira. Ciências sociais e ciências da comunicação, 5 anos passados entre arquivos, belos gráficos e melhores conclusões, enriquecidas pela gravidade que reconhecemos em tudo o que à morte diz respeito. Em tudo? Em quase tudo. Ao folhear um dos jornais, fui surpreendido no momento em que tinha a folha a prumo e em contraluz. Um anúncio de missa de sétimo dia foi então corrompido pela imagem do verso da folha. Ainda se destacava a cruz e o texto, breve e digno, mas a foto do respeitável sexagenário fundia-se com o redondo traseiro de Lucinha Gostosa, 96#######, numa sobreposição de contornos literalmente kamasutrianos. Fiz figas para que a mulher e os filhos do senhor apenas tivessem folheado o jornal na penumbra de uma casa enlutada, mas quem sabe se um deles, perante o insólito, não soltaria a mesma gargalhada que fez com que o moço de recados, montado na prancha e já a meio da barragem, tivesse rodado o pescoço.