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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

31
Jul08

...


Eremita

Pensei nela ainda antes de me levantar. Julgava que aqui seria tomado pelas recordações dos natais, mas a sua imagem tomou conta de mim. Como estará? Quem cuidará dela agora? Não lhe chegarão os elementos? Tinha uma postura altiva, deixava-se colher sem se entregar, mas topava-se fragilidade nas extremidades daquele corpo. Preciso de a encontrar outra vez. A velha casa dos avós vê-se de soslaio da minha janela. Vai para ruína, é deixá-la ali mais uma geração, só que o portão ainda me parece intransponível. Talvez galgando o muro consiga entrar no quintal e rever a romãzeira.

30
Jul08

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Eremita

Entrei no cacilheiro de bicicleta e fiz a travessia do rio ainda de madrugada, sem olhar sequer uma vez para Lisboa. Quem voltou a não apreciar esta minha dimensão teatral foi o meu irmão, a quem pedi que me levasse os pertences de carro. Pedalei até Alcácer do Sal, onde cheguei já de noite. Aí pernoitei, fazendo-me à estrada ao raiar do dia. Consegui chegar  à vila ao fim da tarde, isto é, ontem. O meu irmão já lá não estava, mas deixou-me os pertences na casa que aluguei, incluindo o computador e a ligação wireless. Eremita ma non troppo.

 

 

23
Jul08

...


Eremita

O BICHO Pensei em fazer esta viagem com umas sete ou oito pessoas diferentes. É mania que dura há anos, talvez desde o Thelma & Louise. A primeira parceira foi Geena Davis, só que a moça depois cresceu um bocadinho demais e para todos os lados, como se um soprador de vidro a tivesse insuflado pelo umbigo. Logo a troquei pelos meus amigos. S., T., H., um pequeno alfabeto de homens e mulheres, promessas reiteradas, sonhos partilhados. Ninguém. É difícil sincronizar o desejo e poupem-me ao exemplo do orgasmo simultâneo, esse truque fácil para o reforço da empatia. Sobrei eu e o bicho. Fui passeá-lo ontem de madrugada. Fiz a FDR com o vidro aberto, gozando no rosto a aceleração aparente desta atmosfera quente e estagnada. As superfícies metálicas, como os corpos suados, gozam da propriedade ambígua que é rechaçar a luz deixando marca. São reflexos com direito de autor. Relembro-o por causa do anúncio gigantesco da Coca-cola em letras encarnadas de néon do outro lado do rio, ali na fronteira entre Queens e Brooklyn, que não passa cartão aos táxis amarelos mas gostou do azul-escuro do bicho e andou a brincar pelas arestas da carroçaria, mesmo se o East River - não sendo um rio - é caudaloso e em tempos quase afogou um surfista australiano (factual). 

A cidade muda quando se guia, o que ontem aconteceu pela segunda vez em 5 anos. Na primeira, andei por aí com uma carrinha de mudanças desconjuntada que fui buscar ao Harlem. Agora foi de Mustang. Dá ares de sonho americano, só que é tudo uma ilusão, como ilusório parece ser arrumar o carro na East Village, uma zona da cidade que só atrai estudantes e remediados mas que deve ter moradores em número suficiente para saturar os lugares de estacionamento. Ignoro se a regra de ter de mudar o carro de sítio todos os dias ou ao segundo dia ainda existe, mas às duas da madrugada as ruas estavam lotadas e não havia movimento. Voltei a casa sem sair do carro. Enfim, serviu o passeio para me acostumar ao bicho, tomar-lhe as medidas. Ganhei o golpe de vista necessário e experimentei no fim um certo orgulho por não o ter riscado, sobretudo porque me cruzei com vários taxistas paquistaneses.
Já em casa, não resisti a descer à rua uma última vez, sob pretexto de verificar se havia recolhido o espelho reflector. O que queria era sentir o bicho mais uma vez. Coloquei as mãos perto motor, senti um vestígio de trepidação e a chapa morna. O bicho parecia um mamífero de verdade.

23
Jul08

...


Eremita

NAVEGAÇÃO DE CABOTINO Parto amanhã. Não resisti a folhear Tocqueville, como se em vésperas de um exame. A verdade é que só o fiz para queimar tempo. Se há tarefa que não percebo é a de fazer as malas. A julgar pelo tempo que as pessoas tiram para fazer as malas, a descrição parece literal, sugerindo que se deve ter em conta o quão difícil é encontrar uma vaca ou cabra para sacar um bom couro. Na era da Samsonite, o lusitano continua a pensar como um artesão de marroquinaria medieval. E eu, que fiquei com este reflexo entranhado, na verdade faço as malas em 10 minutos e sempre dispenso o plural, sobrando-me depois tempo que talvez devesse ocupar com essa outra tarefa de proporções hercúleas que é o planeamento da viagem. Mas aí nem é uma questão de ser despachado, é mesmo por teimosia que não abro um mapa, quanto mais um guia. Li uma vez um Lonely Planet e só curei a depressão quando estava já de regresso. Agrada-me a improvisação. É preciso estar em San Francisco a 19 de Agosto? Aponto para o dia 10 e vou andando para Oeste, de motelzinho em motelzinho. É uma navegação de cabotino.

22
Jul08

Mustang (1)


Eremita

 

 

 

LIVRO DE ESTILO: Já tenho as chaves do bicho. Vai apetecer ir deixando aqui impressões desta terra. Nada de grandes fôlegos à Natália Correia. Se há coisa que devemos evitar é um europeu a explicar a América. Serão as impressões possíveis. Entradas curtas, cenas impressionistas, aguarelas 20 cm x 15 cm, esquissos a lapiseira, instantâneos digitais. Uma opção estilística? Isso. Relato de um coast to coast, pois claro, o grande clássico. Direcção oeste, como um Lucky Luke sem pileca. E em modo lonesome cowboy intermitente, que sempre se encontra companhia pelo caminho. Vou de Mustang e nem sequer pago por esta abundância de estilo. Se penso no estofos do bicho até me comovo. Sou um homem com sorte, mas não posso riscar o bicho. Logo me avisaram que o dono, lá em San Francisco, é do tipo temperamental.

 

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