...
Eremita
Que rosto para Tatiana? Tem sido muito útil frequentar o Pingo Doce. Trata-se de um espaço sobredimensionado, à entrada da vila, que reproduz em Ourique a mesma sensação de total insignificância que experimentei nas grandes superfícies comerciais das cidades americanas. Curioso isto de ter sentido pela primeira vez a angústia da pequenez cósmica naqueles enormes supermercados, no IKEA de Nova Jersey, numa farmácia na periferia de algum subúrbio de alguma cidade de um certo estado (Florida?), e não no planetário nacional onde me levavam quando criança, nem no que depois visitei pelo meu próprio pé, em Nova Iorque; só mesmo no Pingo Doce de Ourique recuperei a escala cósmica. Enfim, de lá trago também os dois litros diários de gaspacho de pacote - vivo a gaspacho e pão, o meu tracto intestinal é como uma viela de Buñol em perpétua última quarta-feira de Agosto (a Tomatina). Mas não trouxe ainda a Tatiana. Das 5 ou 6 empregadas com quem me cruzei, nenhuma tem um rosto passível de ser amado. O ficcionista pode dar-se ao luxo de ser tão cruel como o mais caprichoso playboy - e eu quero para Tatiana primeiro um rosto sublime e só depois a complexidade e as encruzilhadas da vida. Há uns dias, a rapariga que me atendeu esteve perto, mas faltava-lhe comprimento e altivez no nariz, que era abatatado. No regresso a casa, porém, cruzei-me com uma moça que me causou forte impressão. Voltei a vê-la dois dias depois e outra vez ontem, ao fim da tarde, sempre na mesma rua. Escusado será dizer que estou hoje com aquela batida de coração que, logo pela manhã (são 8 horas) inicia um crescendo que nenhum virtuoso seria capaz de imitar no seu instrumento, visto durar de nascente a poente, mas numa aceleração tão lenta que não chega a dar cabo de mim e ainda me deixa vivo se ela me falha um dia, apenas durmo mal. Não sei como o corpo consegue somatizar de forma tão eloquente - porque é ritmo e som - esta minha ansiedade, este desejo que parece rebentar comigo ao fim da tarde, quando a vejo, e depois se apazigua antes de ela voltar a desaparecer, para só durante o sono me minar o corpo outra vez, a fim de recomeçar a crescer no dia seguinte. Eu sabia que as cidades estão cheias destas armadilhas mas não antecipava que a mesma armadilha aqui pudesse ser tão mais inescapável. Deve ser da baixa densidade populacional. Ou de haver tantas velhinhas. Ou então é do ar quente, capaz de dar ao rosto desta mulher o rubor que a completa. Deuses (todos eles), arrisco a descrição (mas é favor multiplicar por mil o entusiasmo): parece genuinamente irritada com a vida, avançando resoluta - o que na vila não faz sentido e lhe dá alguma comicidade - e sem me conceder sequer um olhar. Os olhos são claros e mais rasgados que na portuguesa típica, sendo esse um dos sinais mais óbvios do seu encanto. Nariz fino, pouco comprido mas muito nobre. Tez clara, com o tal perpétuo rubor. Cabelo com corte afrancesado, liso, escuro, sem jeitos, porém forte. Boca discreta, sem os tais lábios húmidos, ou polposos, nem a pequenez pornográfica, mas que concentra e oferece toda a sensualidade do rosto, como uma goteira - foda-se, não gozem - recolhe e expulsa as chuvas do telhado. Ah, o rosto. O rosto parece ter sido desenhado por um Hugo Pratt num dia em que a preguiça e uma inesperada felicidade lhe arredondaram e abrandaram o traço firme e brusco. É que nesta mulher o anguloso se funde com feições de uma difusa maternidade, pelo que tanto me apetece levá-la para a cama como fazer-lhe apenas carícias, e não oscilo entre estes desejos, antes os experimento ao mesmo tempo. Tem ainda sardas, tão difíceis de dosear e polvilhar como a mais potente das especiarias, mas que nela se distribuem com uma graça que só me lembro de ter visto uma outra vez. Tatiana já tem fachada - e eu preciso deste remate cínico porque não estou capaz de me apaixonar.