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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

04
Ago08

...


Eremita

A casa sorveu os últimos 30 anos, indo buscar a cada segundo a gota de água que se inflitrou na madeira e o raio de sol que fez estalar a tinta. Acusa a passagem do miúdo que pela calada apedrejou as vidraças e deixou-se possuir pelos animais, do bicho-carpinteiro à andorinha farta das agruras dos beirais. O alpendre cede, o telhado cede, as janelas perderam portadas e estão entreabertas. As casas em ruínas exercitam a sua perversa hospitalidade e apenas não entrei por causa do guarda-republicano, que só após insistência minha - " É neto do senhor M.?" - me deixou andar no jardim feito mato à lei da selva, mas sem nunca afrouxar uma vigilância feita do pátio do quartel construído na parte baixa do quintal, a tradução geográfica do compromisso que encontrou entre o dever de ofício e o pudor e respeito que o meu pedido lhe despertara. Pensei que a romãzeira definhara sem quem a regasse e à sombra da exuberante buganvília, mas a conclusão foi apressada. Afastando alguns ramos, não só a árvore ainda estava de pé como me oferecia os seus frutos. Frutos ainda verdes, caso contrário teria comido um logo ali em vez de o guardar no estojo da máquina fotográfica. Seria mais simbólico pegar numa romã madura e gretada de tão túrgida, abri-la com os dedos e encher a boca com o mesmo sumo de há 30 anos, mas aquele fruto incipiente era já uma promessa de futuro e na sua modéstia trazia alguma verosimilhança à própria realidade. 

 

 

 

O fruto deixou-me imune a todas as interpelações. Talvez não resistisse se tivesse sentido os rissóis feitos num óleo irreproduzível que nos fritos conferia à Emília um toque muito além do de Midas. Mas esse cheiro não veio, nem o da pele de vaca no chão da sala, o das madeiras escuras do escritório do avô, o aroma discreto das sardinheiras sob o alpendre, e com os outros sentidos posso eu bem, só mesmo o olfacto parece chegar ao cérebro sem qualquer tipo de mediação. Foi pois sem ponta de tristeza que  inspeccionei as ruínas. Se as pessoas nascem e morrem, que outro destino se quer inventar para as casas? A decadência financeira e a desistência da minha família, da GNR, do Ministério da Administração Interna, enfim, do país, não abalaram esta convicção. Mas 30 anos de luto basta, é tempo de a casa ser restaurada ou vir abaixo. Já faz de morta há tempo suficiente.

 

 

 

 

 

 

A casa que aluguei tem vista para a dos avós (foto anterior). É um T1 sem banheira, apenas poliban, mobiliário sem história e maus acabamentos. Deve ser um gelo no Inverno, mas não conto ficar aqui para lá do Verão, os meus impulsos espartanos tendem a ser inconsequentes. Pedi que levassem a televisão embora, o que causou algum espanto. Estou agora ligado ao mundo pela rádio, internet e imprensa, que vou lendo com um ou dois dias de desfasamento - faço notar que os jornais chegam a horas, não vale a pena fingir para efeitos de estilo que Ourique fica no cu de Judas. O telemóvel é para descontinuar aos poucos, ontem só enviei umas 3 ou 4 mensagens. Os meus pais sabem que vim até aqui mas desconhecem onde conto passar o Verão e que me despedi do emprego. Os meus colegas sabem que me despedi e nada mais. A alguns amigos disse para onde vinha, sem acrescentar que me despedi. Não menti, nem sequer por omissão, a verdade ficou foi fragmentada. Sobra o meu irmão, omnisciente, não vá eu precisar de uma testemunha que me convença desta opção de vida. Mas sei que ele só cometeria uma inconfidência em caso de risco de  morte e não é por se vir morar uns meses aqui que um tipo se sente devedor das estatísticas do suicídio no Alentejo. Sobretudo porque o restaurante A Mó, que apenas recordava como um antro pejado de taxidermia, serve hoje um gaspacho competente e também porque não há pathos, spleen, gravitas, remorso ou frustração capaz de me deixar indiferente ao par de mamas que, a uns metros de distância, anuncia uma festa de Verão. Outra promessa de futuro.

 

 

 

 

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